As vezes a vida não é do jeito que queremos, tão pouco do modo que planejamos, não sei se todos são assim, mas eu sou uma pessoa extremamente metódica e sistemática, gosto de tudo detalhado nos mínimos detalhes, gosto de traçar a rota a seguir, acho que porque tenho uma natureza digamos que um "pouco" controladora, gosto de ter as coisas sob meu domínio, definitivamente já fui muito mais controlador e neurótico do que sou hoje, mas ainda tenho muito o que melhorar.
A vida inteira a gente ouve as pessoas falarem que tudo tem um início, meio e fim, acho que no final das contas não gosto muito da palavra fim, sempre tive dificuldade em terminar algumas coisas, em fechar ciclos, em terminar relações, acho que talvez por medo do novo, por medo de lidar com o inesperado, acho que não só medo, mas a sensação de perda de controle das situações, me sinto um pouco menos dono de mim quando o trem sai do trilho, quando as coisas não acontecem da maneira que eu planejei, me frustro quando minhas expectativas não passam de expectativas.
Esse primeiro semestre eu digo que amadureci anos em meses, que aprendi mais sobre em mim alguns meses do que aprendi em 3 décadas, sim 3 décadas, vivendo de maneira controlada, rígida e minimamente planejada. Acho que a vida me ensinou a ser um pouco assim, a cobrar demais, a não desistir nunca, a ir em frente e atropelar tudo que estiver no caminho, inclusive a mim mesmo. Nas minhas sessões de terapia este foi um tema recorrente, minha terapeuta sempre me pergunta "Você sabe qual é o seu limite?" ... hoje eu sei qual é o meu limite, até onde eu posso ir sem fazer mal a mim mesmo.
Acho que passei a vida inteira me desrespeitando, me mutilando, ultrapassando meus limites, não aceitando a perda, a dor e o fim. Tive momentos bem difíceis na minha vida, uma mãe que amo muito, que me ensinou muito, mas que nunca olhou nos meus olhos e disse um "eu te amo", uma mãe que nunca me deu um abraço, acredito que porque ela nunca teve isso, e quando não temos não temos dar, ela teve uma infância dura, irmã mais velha de mais de 10 irmãos, ela teve de ser mãe, dona de casa, mulher de trabalho, tudo muito cedo, ela tinha que matar muitos leões todos os dias durante sua infância, muitos dragões para construir e manter uma família, mas ela assim como eu tem dificuldade em encarar o fim, e entender que o tempo de lutar e matar seus monstros acabou, ela nunca entendeu que ela podia baixar a guarda, ela não se deu o direito de relaxar, parar e descansar, acho que se ela tivesse a guarda eu hoje seria um pessoa muito diferente do que sou hoje.
Fora isso, minha infância não foi das melhores, ainda criança sofri abuso sexual por um primo 10 anos mais velho do que eu, e isso perdurou por anos, e quando meu pai descobriu, eu ainda fui culpado, apanhei uma única vez do meu pai, não lembro a idade exata que tinha, mas sei que era menos de 6 anos, pois foi antes de estar na pré-escola, acho que foi uma época tão ruim pra mim que não lembro de muitas coisas, minha mente foi tão boa comigo que não lembro das vezes que fui abusado, tenho lampejos somente, mas lembro da reação do meu pai, lembro dele ter dado um soco na minha boca, de eu ter sido lançado contra o armário do meu quarto e lembro do calor do sangue escorrendo pela minha boca, mas não lembro da dor, porque eu acho que mais do que a dor, o que eu senti foi um sentimento de rejeição, é muito duro você se ver sem um porto seguro, você buscar proteção e socorro e não encontrar, isso sim dói, a rejeição não corta, ela dilacera a alma é te quebra em milhões de pedaços que a impressão que se tem é de que você nunca vai juntar esses pedaços.. nunca...
Sei que foi antes dos seis anos, porque quando eu tinha seis anos, minha única referência de amor foi tirada de mim sem compaixão nenhuma, simplesmente sem nenhum prévio aviso, foi assim e pronto, arrancada da minha vida sem pedir licença, minha madrinha tão amada que consigo fechar os olhos e lembrar do sorriso dela, dos abraços, das brincadeiras, se me concentrar um pouco mais consigo até lembrar do cheiro tão bom que ela tinha, minha madrinha tão amada que nem tive a chance de abraçar e dizer "eu te amo" antes dela ir. Mas a vida é assim, nem sempre do modo que queremos, e o câncer veio e a levou de mim, lembro ainda como se fosse hoje quando eu na minha inocência perguntei pra ela o porque ela estava careca, e ela com um sorriso cheio de luz disse que havia pintado os cabelos de rosa e não tinha dado certo e os cabelos haviam caído todos, pensei comigo "uau... que madrinha badass que eu tenho"... e ela virou minha super heroína, mas ela teve que ir embora, mas o amor dela era tão grande que mesmo no leito do hospital ela quis se despedir de mim e pediu pra minha mãe me levar no hospital porque ela sabia que nunca mais iria voltar pra casa, mas não pude entrar por causa da minha idade, e ela pediu pra minha mãe me colocar na calçada de frente com a janela do quarto dela, e foi assim, a última vez que senti o amor na minha infância.
Acho que devido a isso eu sempre busquei aprovação dos meus pais, sempre fiz o meu máximo na esperança de ouvir o tão esperado "eu te amo", ou aquele abraço apertado que via as outras crianças ganharem, eu era uma criança, não entendia das coisas da vida e pensava comigo "se meus amigos aprontam, vão mal na escola e mesmo assim ganham afeto dos seus pais, se eu for melhor do que eles com certeza eu vou também ganhar esse tal de afeto", e assim fiz eu, aprendi a ler e escrever muito antes que qualquer outra criança da minha turma, acho que amo tanto os meus professores e lembro deles com tanta clareza porque eles sempre me elogiavam, eles sempre reconheciam o meu esforço, lembro como se fosse hoje uma professora em uma reunião falando que minha mãe deveria correr atrás para me adiantarem um ano na escola, porque eu já era alfabetizado enquanto outras crianças ainda estavam desenvolvendo a percepção motora e conceitual. Lembro da minha professora de todos os anos seguintes, em toda minha formação no ensino fundamental não me lembro o que foi tirar uma nota que fosse diferente de "A" o equivalente ao "10" hoje em dia.
Acho que por essa minha busca desenfreada por afeto e reconhecimento, sempre fui uma criança mais sensível, então imagine só, além de negro, CDF eu ainda era o "viadinho" da turma, então minha infância não foi flores, aprendi desde muito cedo a disfarçar a tristeza com um sorriso amarelo no rosto, aprendi a não demonstrar fraquezas, porque se você demonstra fraqueza as pessoas vão se aproveitar dela uma hora ou outra, aprendi a guardar os meus segredos até de mim mesmo, sempre fui uma pessoa que era amigo de todos, que todos chamavam para brincar, que vinham contar os segredos e pedir conselhos, mas eu nunca encontrei em ninguém esse tipo de pessoa naquela época, me fechei no meu mundinho e ali vivi durante anos, dos meus escombros ergui uma muralha, e assim nasceu e cresceu o meu eu inatingível.
E assim foi durante toda minha adolescência, quando entrei no ensino médio, mudei um pouco meu comportamento, deixei de ser tão sensível e comecei a me expor mais, aprendi a brigar, aprendi a ser mais rebelde, tenho um senso de justiça muito latente, não gosto de ver alguém maltratando outra pessoa, não gosto de injustiça, de discriminação, porque eu sei o quanto isso dói então na adolescência acabei me tornando um rebelde, mas um rebelde com "causa", acabei aos poucos descobrindo minha voz, na verdade acabei descobrindo que eu tinha uma voz e que essa voz podia ser ouvida pelas outras pessoas e que essa voz podia fazer a diferença para alguém, mesmo que fosse pequena, mas ela podia fazer a diferença e quando entrei na minha vida adulta, decidi fazer um trabalho voluntário de 02 anos para a igreja que frequentava.
Estava decidido, queria dedicar dois anos da minha vida dando aquilo que eu mais queria pra mim, atenção, amor e esperança, então decidi conversar com minha mãe - meu pai nunca foi uma figura muito impositiva dentro de casa - e sabia que a conversa não ia ser das mais agradáveis, porque não estava nos planos dela eu "perder" dois anos da minha vida em um lugar que nem eu mesmo sabia onde iria conversando com estranhos, mas como eu já tinha voz, eu fiz minha voz ser ouvida e mantive minha opinião, como disse no começo, a vida me ensinou a passar por cima das coisas que estão na minha frente e assim foi, alguns meses de preparação e lá estava eu, deixando minha casa e indo rumo ao desconhecido, lembro que quando minha mãe veio se despedir de mim ela não me abraçou, não me disse que me amava, ou coisa do tipo, ela olhou bem fundo nos meus olhos e disse "Você está indo, então não volte antes dos dois anos, vá e fique até o fim... vá com Deus" e foi assim nossa despedida e eu fui.
Foram dois anos sensacionais, convivendo com pessoas diferentes, nacionalidades diferentes, histórias e problemas diferentes, e foi desses dois anos que nasceu em minha uma esperança inabalável nas pessoas, a certeza de que as pessoas mudam e mais do que isso, que elas podem mudar para melhor, nesses dois anos eu vi milagres acontecerem, experiências tão sagradas pra mim que se um dia eu escrever, precisa ser em uma outra ocasião... fiz amigos que trago comigo até hoje, acredito que esses dois anos serviram pra eu deixar de buscar tanto afeto e começar a distribuir mais, talvez minha vocação não seja colher, mas sim plantar, e plantei muito e colho os frutos disso até hoje, e nesses dois anos eu me destaquei, fui o melhor voluntário, o que mais fazia contato com as pessoas, o que mais levava pessoas para a igreja, pelo menos minha busca pela perfeição ajudou nisso, a ajudar outras pessoas, mas os dois se passaram e tive que voltar pra casa, voltei pensando que iria mudar o mundo, mas não mudei, porque mesmo passando por toda essa experiência eu não havia mudado a mim mesmo ainda, e é clichê, mas é a mais pura verdade "o mundo muda, quando você muda".
Não vou dizer que não mudei, porque mudei muita coisa, mudei o jeito de enxergar o mundo, me tornei uma pessoa mais compassiva, mas como eu disse eu mudei o jeito de enxergar o mundo, mas não havia mudado a maneira de enxergar a mim mesmo, e a gente só muda quando consegue se enxergar, se analisar, se conhecer melhor, e isso eu não tinha feito ainda, iria levar anos até eu começar a me conhecer de fato, porque nesse período ainda continuei a lutar comigo mesmo, porque eu ainda tinha que ser o melhor em tudo.
Depois desse período eu conclui minha primeira faculdade, iniciei uma segunda, me pós graduei, cresci profissionalmente, com muito suor, sempre ansiei por mais, mais conhecimento, mais crescimento, mais dinheiro, mais reconhecimento, afinal eu fui criado para ser o melhor em tudo, pra mim não existia prêmio para o segundo lugar, tudo que fosse diferente do primeiro lugar para mim não me trazia nenhum tipo de motivação ou felicidade, pelo contrário, era um sentimento de frustração de não poder estar no topo do pódium e foi assim, eu tracei um plano pra mim e fui fazendo tudo o que precisava pra chegar lá, de maneira honesta, mas fazia literalmente tudo o que tinha que ser feito, sou um profissional extremamente competente e também competitivo e com isso fui crescendo, e eu fui subindo degrau por degrau, e quando via que não tinha mais para onde subir eu procurava algum outro lugar onde existissem mais degraus, lembro dessa época em que chegava em casa meia-noite da faculdade, dormia por volta da uma da manhã e acordava por volta das quatro, quatro e meia para ir trabalhar, e se alguém me perguntar se eu me arrependo disso, eu respondo "de maneira alguma", porque hoje eu vejo que consegui boa parte do que queria, boa parte do que havia planejado pra mim.
Lembro que logo que comecei a trabalhar minha meta era trabalhar no prédio azul espelhado que existe na rodovia próximo a minha casa, sempre que passava e olhava aquele prédio imponente eu falava pra mim mesmo que iria trabalhar ali, mas não foi assim, fui trabalhar em outra cidade, fui trabalhar no lugar mai imponente do Brasil, no coração da vida financeira deste país, fui trabalhar na Avenida Paulista em uma empresa muito bacana, mas passado alguns anos eu recebo um telefonema de uma agência falando que tinham uma vaga na tal empresa do prédio azul de vidro espelhado, e lá fui eu, fiz a entrevista, passei sem problema algum e comecei a trabalhar, na época não era só o prédio da empresa que era imponente, a empresa em si era uma empresa imponente, crescendo no mercado, se estruturando, com planos e horizontes que faziam os olhos de qualquer profissional brilhar, mas de novo, nem tudo são flores, na época tinha um gerente que se apoiou em mim, ele não era uma pessoa ruim, mas era uma pessoa que não conhecia o que estava fazendo e tirava mérito do meu trabalho, além de eu fazer o meu trabalho, acabava fazendo o meu o dele e o de outras pessoas do departamento, porque ele passava pra mim, porque confiava na minha execução.
E tudo isso foi dando frutos, tive em um ano três promoções, no ano seguinte mais duas, no terceiro ano fui promovido a coordenador, mas isso teve um preço, estava em frangalhos, em cacos, não tinha uma vida fora da empresa, não suportava mais trabalhar naquele ritmo, olha pro meu gerente e minha vontade era voar no pescoço dele, até que um dia eu cheguei no meu limite e senti que ia entrar em pane, então procurei uma terapeuta e digo que essa minha terapeuta é um anjo, ela me leu e me decifrou, e nesses anos de terapia ela sempre disse que eu precisava sair daquela empresa, que eu precisava respeitar meus limites, que eu estava me mutilando emocionalmente, ela sempre dizia que a minha capacidade de me adaptar à pessoas e situações sempre me ajudou a me manter são e alcançar as coisas que eu queria, mas como tudo na vida, tudo tem um limite e eu não enxergava esse limite e continuei. Meu gerente não aguentou a pressão, as mudanças e a situação ruim que a empresa estava passando e saiu do barco, então sem pensarem duas vezes me colocaram na posição que era dele, mas daí pra frente a empresa mudou, "testaram" diversos diretores para salvarem a empresa para ela não cair do penhasco que estava frente a ela, e a cada novo diretor uma nova cultura, um novo modo de se pensar e de se trabalhar e isso começou a mexer com a minha cabeça, e esse sempre foi um assunto recorrente em minhas sessões, a necessidade de eu sair de lá, eu não tinha mais que provar nada para ninguém, até o ano passado eu já tinha passado por 07 diretorias diferentes e todas elas me conheciam e admiravam meu trabalho, mas na minha sede por mais, ou por meu medo de fechar ciclos eu estava lá, buscando mais, insistindo e persistindo, até que colocaram um diretor que queria que eu fizesse coisas ilícitas, mas como meus valores vem em antes das minhas ambições, minha resposta foi não, e a partir deste não minha vida virou um inferno, humilhações, perseguições e por ai vai.
Mas acho que inconscientemente eu continuei porque sair de lá era como desistir, eu me construi naquele lugar, na minha cabeça aquele era meu território e numa guerra não se abre mão do território, mas quem disse que eu estava em uma guerra? Guerra com quem? Guerra pelo que? Mas antes de eu chegar nessas respostas eu surtei, entrei em depressão, e me afundei, a sensação que eu tinha é de que tudo que eu tinha passado desde a minha infância tinha sido em vão, a sensação que eu tinha era de fracasso, por não ter aguento mais... mas com a ajuda desse meu anjo, hoje eu digo que mudei, porque aprendi muito com essa situação, sofri igual o cão como você pode ler nos textos que escrevi antes desse, pensei que não tinha mais luz no fim do túnel, queria que tudo acabasse, que o caos que era minha vida acabasse, mas graças a Deus não acabou... o que acabou foi um ciclo, o que mudou foi a página, esta história teve um início, um meio e fim e agora o recomeço.
Mas engana-se quem pensa que toda história tem um final feliz, isso só acontece em contos de fadas, as histórias não precisam terminar feliz, as histórias precisam terminar em aprendizado, as histórias precisam terminar, o ciclo se encerra para o começo de um novo e assim que a vida segue, novas histórias, novos tombos, novos passos, novas conquistas, quando encerramos um ciclo, conseguimos olhar mais a fundo nossa vida, conseguimos dar atenção para pontos que antes não conseguíamos enxergar, ou que muitas vezes não queríamos enxergar para não termos "mais um" problema para resolver. Encerrei um ciclo, virei uma página e agora tenho um novo capítulo pela frente.
E a única coisa que eu posso dizer é que o essencial não é vencer sempre, não é ser o número 1 em tudo, não é buscar insanamente por aprovação ou por amor, o essencial é aprender e ser, aprender com a vitória e com a derrota e ser, mas ser o que? Ser feliz e ponto final.